Alfabeto Maldito
Quando é preciso saber que não sabemos o suficiente:
Alfabeto maldito enquanto um exercício de desleitura
por Maykson Cardoso
1. Do mundo da forma à forma do mundo
Entre todos os pontos de partida que se pode tomar para começar a compreender Alfabeto maldito, há um que diz muito sobre as forças que, aí, se colocam em jogo: o fato de que esta é a primeira colaboração que Joélson Bugila e Jorge Menna Barreto assinam conjuntamente, enquanto “trabalho de arte”. Por isso, é possível começar pensando que este alfabeto particular surge primeiramente de um encontro sensível que propiciou um exercício de depuração das questões que ambos os artistas vêm desenvolvendo ao longo de suas trajetórias. O que, sem sombra de dúvidas, leva a passar panoramicamente por certos trabalhos que dão a ver uma relação mais direta entre aquilo que fizeram e o que ora apresentam.
Os interesses de Jorge Menna Barreto pela linguagem, pela tradução, pela construção de uma relação complexa destas com a site-specificity e, ultimamente, também com o cultivo agroflorestal e o ativismo alimentar, têm resultado em uma série de projetos que vêm se complexificando a cada novo desdobramento. Entre eles, destacam-se, nos últimos anos, os Sucos específicos (2014), feitos com plantas selvagens comestíveis cujas propriedades estão relacionadas às especificidades do lugar onde crescem; Restauro (2016), que integrou a 32ª Bienal de São Paulo, onde o artista instalou um restaurante que oferecia comida feita com alimentos cultivados em agroflorestas situadas nos arredores da metrópole, ao mesmo tempo que dava lugar a uma série de ações educativas que, entre outras coisas, trazia semanalmente agrofloresteiros para falar com o público participante; e, por último, Londelion (2017), realizado na Serpentine Gallery, em Londres, que consistiu na fabricação de sorvetes de dente de leão — dandelion, em inglês, talvez a mais conhecida das chamadas “ervas daninhas” —, presença marcante nos parques de Londres. Esses projetos dão a dimensão de uma preocupação evidente para o artista, totalmente alinhada à sua tomada de posição em relação à responsabilidade ambiental e a outras possibilidades de produção de alimentos que fazem frente aos processos de devastação ambiental.
Por sua vez, os trabalhos mais recentes de Joélson Bugila dão testemunho de um tipo de expressão que é capaz de combinar uma sorte de pensamento gráfico às experimentações escultóricas, de colagem e, em alguma medida, pictóricas, sem deixar de estar atento às exigências da ordem do dia. Isto é, o artista tem feito um uso muito pertinente da forma e do conteúdo, sem que este seja valorizado em detrimento daquela. No último ano, sua pesquisa exaustiva com jornais impressos, especialmente os brasileiros, deu corpo a um conjunto de trabalhos que, se de um lado lidava com suas matérias cinzentas (ou seja, com a materialidade do papel mas, também, de modo figurado, com as matérias jornalísticas), de outro procurava insistentemente encontrar ocasião para a inventividade nas brechas entre uma coluna de jornal e outra — as quais o artista chamou de “áreas livres”. Assim, se em alguns trabalhos o artista dá ênfase à violência cotidiana das cidades, expressa em cada palavra das manchetes que ele recorta e coleciona para compor textos em colagens; em outros, ele recorta e coleciona as “áreas livres” para construir uma paisagem pictórica vibrante, como quem buscasse o último canto de liberdade para reinventar o mundo em meio à terra arrasada das notícias dos jornais.
Quer dizer… é bom que se tenha em mente que este Alfabeto maldito é resultado de dois modos diferentes de pensar e se haver com o mundo da forma e, portanto, com os problemas da arte, mas de comum acordo no que se refere à responsabilidade ética daqueles que se esmeram em buscar — ou apostar em — outras saídas, mesmo quando parece não haver nenhuma saída possível. Assim, mesmo diante da diferença em relação ao modo como trabalham o “mundo da forma”, Joélson Bugila e Jorge Menna Barreto se encontram na esperança de mudar minimamente a forma do mundo. E, com isto, entenda-se: mudar minimamente o modo como temos vivido no mundo, mudar a perspectiva a partir da qual o olhamos e nos relacionamos com ele.
2. Um alfabeto indecifrável
Alfabeto maldito é um título que pode ser imediatamente relacionado a alguma instância da letra. Mas, se assim o for, não surtirá outro efeito senão o de uma rasteira em quem se dispõe a olhá-lo a partir dessa perspectiva. É que ao confrontar o título com o trabalho, vê-se que não se está, aí, diante de quaisquer letras reconhecíveis: não há, neste alfabeto, nada que represente graficamente as unidades sonoras — os fonemas — que compõem uma língua. Mesmo sua ordem é orgânica, mutável, selvagem: não começa no a, não termina no z, e talvez, sequer, tenha fim… seja um trabalho em curso. E muito embora as imagens possam sugerir um código secreto a ser desvendado — como se fossem hieróglifos ou ideogramas —, qualquer tentativa neste sentido será igualmente frustrada.
Acontece que este alfabeto é, por princípio, indecifrável. O que se deve ao fato de que ele surgiu como uma tentativa de fazer valer a experiência do humano diante de uma linguagem que lhe é completamente estranha e inacessível: a linguagem secreta das plantas. Por isso, diante dele, e dessas letras-plantas, não se está diante de uma experiência de leitura, mas, antes, de desleitura — como, aliás, Jorge Menna Barreto nomeou outro de seus projetos —, a fim de desconstruir este modo de ler humano, demasiado humano. É por isso que Alfabeto maldito nos constrange a tomar uma posição: a de que não sabemos o suficiente sobre o mundo, ou melhor, a de que o nosso saber se limita à nossa condição de humanos constituídos em uma e por uma linguagem que é somente nossa. Neste sentido, o pensamento ameríndio de alguns povos poderia vir ao nosso socorro para finalmente nos oferecer outra concepção do mundo, tal como nos ensina Eduardo Viveiros de Castro, resumindo-a, em poucas palavras, já no início de um de seus artigos: “a concepção de um mundo que é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos”1.
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O projeto Alfabeto maldito é fruto de uma experiência imersiva de Joélson Bugila na Agrofloresta Sítio São José, em Paraty, Rio de Janeiro, em parceria com Jorge Menna Barreto, que acompanhou cada passo dessa experiência. Os artistas contaram com a colaboração inestimável do mateiro Jorge Ferreira, conhecedor da mata nativa da região, e do fotógrafo Rafael Guedes, responsável pelos registros que deram origem às imagens do trabalho e da publicação. Em todas as etapas, o projeto recebeu o apoio do Sesc de Paraty, que também acolheu a exposição.
1. VIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e multiculturalismo na América Latina. In.: O que nos faz pensar. n. 18. setembro de 2004.
Mauvais Alphabet
When We Need to Know We Don’t Know Enough:
Mauvais Alphabet As an Exercise in Misreading
Text by Maykson Cardoso
Translation to English by Rob Packer
1. From the World of Form to the World’s Form
Of all the possible starting points to begin to comprehend Alfabeto maldito (Mauvais Alphabet ), there is one that says much about the forces at stake here: this is the fact that this collaboration is the first that Joélson Bugila and Jorge Menna Barreto sign together, as a “work of art”. It is therefore possible to begin by thinking of this particular alphabet as emerging, above all, from a meeting of sensibilities, providing an exercise to distill issues both artists have developed over the course of their careers: which, without any doubt, leads to a panoramic re-viewing of specific works allowing us to see a more direct relationship between their previous activities and the work they present here.
Jorge Menna Barreto’s concerns—in language, translation, the construction of a complex relationship between these two interests with both site specificity and, most recently, with agroforestry cultivation and food activism—have resulted in a series of projects that have become more complex with each turn. Among his latest work, projects stand out, such as Sucos específicos ( Site-specific Smoothies , 2014), made of edible wild plants with properties related to the site specificity of where they grow; Restauro (2016), which was part of the 32nd São Paulo Biennial, where the artist created a restaurant offering food made with ingredients grown in agroforests located close to the metropolis and which at the same time provided space for a series of educational activities, including bringing agroforestry farmers to speak with visitors to the Biennial each week; and, lastly, Londelion (2017) at London’s Serpentine Gallery, consisting of producing ice cream with dandelions—perhaps the best known of so-called “weeds”—and a significant presence in London’s parks. These projects show the scale of the artist’s evident concern, which is fully aligned with his stance towards environmental responsibility and other possibilities of producing food that can withstand the processes of environmental devastation.
The most recent works of Joélson Bugila, in turn, bear witness to a type of expression capable of combining a kind of graphic thinking with experimentation in sculpture, collage and, to some extent, image, without neglecting the demands of our every day. That is to say, the artist has made an extremely pertinent use of form and content, without one being prioritized to the detriment of the other. In the past year, his extensive research with printed newspapers, above all Brazilian ones, has brought about a group of work that, on the one hand, deals with matters in black and white (in other words, with the materiality of paper but also with journalistic material) and insistently looks, on the other hand, to find a place for inventiveness between one column and another—what the artist calls “free space”. Thus, if in some of the artist’s works he gives emphasis the day-to-day violence of Brazil’s cities, he expresses in each word of the headlines he cuts up and collects to compose texts in collage; in others, he cuts up and collects “free spaces” to construct a vibrant image of landscape, like someone looking for the last corner of freedom to reinvent the world in the midst of a planet devastated by the news.
That is, one has to bear in mind that this Mauvais Alphabet is the result of two different ways of thinking and if it has to do with the world of form and, as such, with the problems of art, it is by mutual agreement with respect to ethical responsibility of those diligently looking for—or betting on—other outcomes, even when it seems like there is no way out. Thus, even with the differences in relation to how they work with the world of form, Joélson Bugila and Jorge Menna Barreto meet in the hope of changing, even minimally, the world’s form and we should understand this as: changing minimally how we have lived in the world, changing our perspective in how we look at—and our relationship to—the world.
2.
Mauvais Alphabet can be immediately linked, as a title, to the level of the letter. But, if so, it would cause any other effect than that of leading astray whoever looks at it from this perspective. Setting the title against the world, we can see that we are not in front of any recognizable letters: there is not, in this alphabet, anything to represent the units of sounds—the phonemes—that make up a language. Even its ordering is organic, mutable, wild: it does not begin with a and end with z, and perhaps even does not have an end… is a work in formation. And even though the images could suggest a secret code to be unravelled—as if they were hieroglyphs or pictograms—, any attempt in this direction will be likewise frustrated.
It turns out that this alphabet is indecipherable as a matter of principle. This is due to the fact that it emerged as an attempt to underscore the experience of a human faced with a language that is completely strange and inaccessible: the secret language of plants. Therefore, faced with this and these letter-plants, a human is not faced with the experience of reading, but rather with misreading —as Jorge Menna Barreto named another of his projects—, with an aim to deconstruct this human, all too human way of reading. Consequently, Mauvais Alphabet forces us to take a stance: that we do not know enough about the world, or rather, that our knowledge is limited to our condition as humans constituted in and by a language that is ours alone. In these terms, the ways of thinking among some Amerindian groups could come to our aid to offer us finally a different conception of the world, just as Eduardo Viveiros de Castro teaches us, summing it up in a few words at the beginning of one of his articles as: “the conception of a world inhabited by different human and nonhuman species of subjects or people, that apprehend the world according to distinct points of view”1.
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The project Mauvais Alphabet is the fruit of an immersive experience by Joélson Bugila at the agroforest Sítio São José, in Paraty, Rio de Janeiro State, in partnership with Jorge Menna Barreto, who took part in every step of this experience. The artists had invaluable collaboration from the woodsman, Jorge Ferreira, an expert in the region’s native forests, and from the photographer Rafael Guedes, responsible for the photos that gave rise to the images in the work and the publication. In all its stages, the project received support from Sesc in Paraty, which also hosts the exhibition.
1. VIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e multiculturalismo na América Latina. In.: O que nos faz pensar. n. 18. setembro de 2004.