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Porque uma cidade
sempre contém outra
dentro de si.
– Mário Quintana

A escuta do lugar

Enquanto escrevo este texto, o apartamento do vizinho passa por um processo de “modernização”, termo utilizado atualmente pelos corretores imobiliários como um sinônimo mais glamoroso de “reforma”. O choque de marretas contra as paredes e o trânsito da Avenida Angélica compõem a trilha sonora desta escrita, tornando o som dos dedos no teclado do computador mais um instrumento da grande sinfonia de carros e concreto.

O espírito renovador, acompanhado pelo apagamento do passado, não é novo nesta metrópole. Como grande parte da paisagem paulistana, o local onde se encontra a Casa da Imagem já passou por diversas mudanças. A construção que se vê hoje data de 1880. Antes disso, havia um casarão de taipa que abrigou, entre outras coisas, um hotel chamado Boa Vista, a partir do qual os hóspedes podiam “gozar-se da linda vista da várzea”, referindo-se às margens do Tamanduateí. Desde então, o rio foi retificado e silenciado. A várzea foi transformada em concreto. A boa vista encurtou-se e passou a ser uma cortina de árvores que habitam o pátio da casa, protegendo o olhar e atenuando a brutalidade com que a paisagem foi alterada.

A escuta de Marcelo Zocchio não se dirige ao ronco incessante da cidade voraz. O que o artista ouve é o silêncio de uma ausência, o vácuo deixado por um passado invisível que o faz perfurar o presente. Pesquisando imagens antigas, Zocchio indaga sobre o efeito escultórico do tempo em determinados locais da cidade. Utiliza-se das fotos de arquivo como se fossem mapas, em que busca o exato ponto a partir do qual as fotografias foram tiradas e ali reencena o clique original. Tal mirada é o único ponto fixo de toda essa história. É onde o artista finca a ponta seca do compasso e inicia o meticuloso desenho de sobreposição espacial e temporal apresentado em Repaisagem.

Na imagem que mostra a Avenida 9 de Julho, vista a partir do Viaduto Martinho Prado, percebem-se algumas das escolhas do artista na edição das imagens fundidas. O lado esquerdo da foto prioriza o local em 1940, clicado por Benedito Junqueira Duarte. Ali, ainda encontramos a vegetação de um terreno baldio, onde um grupo de crianças joga futebol. No entanto, já é possível notar ao fundo a cidade em construção, que resultaria no espaço apertado visto no lado direito da foto, em 2012, onde predomina um paredão de prédios. É nessa parede que se vê a sombra projetada dos edifícios que estavam no outro lado da rua no momento em que a foto atual foi tirada. Ao fundir as duas imagens, resta a sombra, mas já não se tem mais o corpo que a produziu. Revela-se assim o passado daquela fotografia, e não o do lugar.

Tais curtos-circuitos temporais e espaciais minam o senso de direção e, mais profundamente, ativam um estranho sentimento de pertencimento. Estranho porque a arqueologia proposta desencava uma cidade que não deixou traços no presente, e, portanto, não é familiar. Assim, a noção de pertencimento não se dá em relação a uma identidade estável construída historicamente, como o termo costuma evocar. A familiaridade reside no fluxo constante, na eterna substituição do presente por um vir a ser. Desmorona-se uma ideia apaziguada de lugar, movimento precisamente cartografado pela fina escuta do artista. Tudo o que se vê aqui não é, apenas está.

Jorgge Menna Barreto, maio de 2013

Republicado na Revista do Arquivo Municipal 205 em 2014

Casa da Imagem de São Paulo, Brasil

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Listening to the place

While I write this text, the neighbor’s apartment is undergoing a process of “modernization”, a term currently used by real estate agents as a more glamorous synonym for “reform”. The impact of sledgehammers against the walls and the traffic of Avenida Angélica make up the soundtrack of this writing, making the sound of the fingers on the computer keyboard one more instrument of the great symphony of cars and concrete.

The spirit of renewal, accompanied by the erasure of the past, is not new in this metropolis. Like much of the São Paulo landscape, the location of Casa da Imagem has undergone several changes. The construction that can be seen today dates from 1880. Before that, there was a large mud house that sheltered, among other things, a hotel called Boa Vista, from which guests could “enjoy the beautiful view of the floodplain”, referring to the banks of the Tamanduateí. Since then, the river has been rectified and silenced. The floodplain was transformed into concrete. The good view was shortened and became a curtain of trees that inhabit the patio of the house, protecting the look and attenuating the brutality with which the landscape was altered.

Listening to Marcelo Zocchio is not aimed at the incessant snoring of the voracious city. What the artist hears is the silence of an absence, the vacuum left by an invisible past that makes him pierce the present. Researching old images, Zocchio inquires about the sculptural effect of time in certain places in the city. He uses the archive photos as if they were maps, in which he looks for the exact point from which the photographs were taken and there he reenacts the original click. Such a gaze is the only fixed point of all this history. This is where the artist puts the dry point of the compass and begins the meticulous drawing of spatial and temporal overlap presented in Relandscape.

In the image that shows Avenida 9 de Julho, seen from the Martinho Prado Viaduct, we can see some of the artist’s choices in editing the merged images. The left side of the photo prioritizes the location in 1940, taken by Benedito Junqueira Duarte. There, we still find the vegetation of a vacant lot, where a group of children play football. However, it is already possible to notice the city under construction in the background, which would result in the tight space seen on the right side of the photo, in 2012, where a wall of buildings predominates. It is on this wall that you can see the projected shadow of the buildings that were on the other side of the street at the time the current photo was taken. By merging the two images, the shadow remains, but the body that produced it is no longer there. Thus, the past of that photograph is revealed, and not that of the place.

Such temporal and spatial short-circuits undermine the sense of direction and, more profoundly, activate a strange sense of belonging. Strange because the proposed archeology unearths a city that has left no traces in the present, and therefore is unfamiliar. Thus, the notion of belonging is not related to a historically constructed stable identity, as the term usually evokes. Familiarity resides in constant flux, in the eternal replacement of the present by a becoming. An appeased idea of ​​place collapses, a movement precisely mapped by the artist’s fine listening. Everything you see here is not, it just is.

Jorgge Menna Barreto, May 2013