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O risco de ser percebido – sobre a série Noturnos
Delineado o assunto de Noturnos, cabe discorrer sobre a linguagem escolhida. Por que fotografias com flash; e por que cenários noturnos? É curiosa a opção, especialmente ao considerar que as plantas são essencialmente seres da luz solar. Sobre a motivação inicial, não há por que fingir: assim como em muitos trabalhos artísticos, a série se iniciou por acaso, sem plano pré-programado, ganhando impulso próprio posteriormente. A princípio, em meio a registros de outros assuntos aleatórios, simplesmente fotografou-se algumas plantas “de rua”.
Uma aproximação intuitiva ao vermos estas primeiras imagens foi a de fotografias de imigrantes surpreendidos enquanto tentavam atravessar fronteiras, registros estes que compõem reportagens sobre imigração ilegal. Coube então investigar e elaborar os motivos de tal associação. Certamente, o elo mais imediato é o fato de se tratarem, em ambos os casos, de atividades clandestinas surpreendidas pelo instantâneo dos flashes. E aqui cabe um breve comentário sobre o uso do flash na fotografia.
Caso composta com luz ambiente, uma foto possui geralmente diferentes gradações de luz e sombra, o que imprime certa espessura de temporalidade às imagens. Já na fotografia com flash, há um achatamento desta heterogeneidade luminosa e, consequentemente, temporal. A luz é estourada e cortante; se há superfície atrás do assunto principal, uma sombra definida se recorta. Aqui temos uma sensação de instantâneo, que faz vibrar ainda mais aquilo que acontece. Não à toa, a linguagem da fotografia “dos flagras” se compõe tão bem com a fotografia com flash – e isto numa gama de assuntos tão vasto quanto o de celebridades em eventos glamourosos, amigos numa festa ou personagens pegos em ocupações ilícitas. Este último assunto, naturalmente, foi o que nos motivou.
Para a composição da série, uma sessão de fotos foi feita no jardim e arredor da galeria Marli Matsumoto, a quem agradecemos por aceitar nossa proposta de deixar essas plantas espontâneas crescerem. Da sessão na galeria, 2 fotos foram incluídas na série. As demais imagens foram tiradas em espaços antropizados aleatórios. Quando feitas ao redor de onde Pedro mora, as plantas ganharam seu apreço e eram buscadas cada vez que ele passava pelo local onde estavam. No entanto, o fotógrafo foi algumas vezes surpreendido: passado um tempo, algumas das “modelos fotográficas” não estavam mais lá, haviam sido arrancadas.
Foi então que nos pesou a existência extremamente transitória dessas plantas, seu tempo de existência dilatada pelo tempo de encontrar um ímpeto organizador. Tal impulso de ordenação do espaço por vezes chega em dias, meses, embora algumas vezes nunca chegue. Em geral, o ser percebido destas plantas se acompanha de um “é preciso arrancá-las”, ou ao menos a constatação de que elas bagunçam o espaço, dão a ele um aspecto de desordem e desleixo. Daí certo estilo de existir que ao mesmo tempo se desenvolve o mais rápido possível para poder se multiplicar, como também conta com o se fazer às escondidas, pois ser percebido pode significar não ser, parafraseando ao inverso a fórmula do filósofo irlandês George Berkeley.
Nosso empenho por notá-las, portanto, buscou imagens em que se capta esse aparecer desafiador, testemunha de um modo que desobedece a prescrição de muitos humanos, que contesta e de certa forma caçoa de nossa concepção de ordem e progresso.
Cultivo
Ao ser convidado para participar da exposição Cultivo, Jorgge Menna Barreto recorreu à sua reflexão em curso sobre as plantas ditas espontâneas. Em conversa com a artista e curadora Raphaela Melsohn, chamou a atenção a conotação “demasiadamente” humana do termo. Cultivo está ligado à cultura e muitas vezes caracteriza uma relação interespécies em que o humano define, de acordo com a sua percepção, o que deve ser cultivado e privilegiado, frequentemente em detrimento de espécies “menos interessantes”. Eis que a proposta de trabalhar com as ervas daninhas propõe uma leitura do termo cultivo pelo seu revés, propondo um olhar sobre aquelas formas de existência que não são cultivadas, mas insistem em estar presentes. A primeira provocação veio para a própria galeria que hospeda o projeto: seria possível, durante os meses que antecedem a exposição, deixar que o jardim que cerca o espaço acolha essas “presenças indesejadas”? Pensando na relação dessas plantas com processos fotossintéticos e encaixando essa linha de pensamento com uma outra conversa em curso, Jorgge estendeu o convite ao fotógrafo Pedro Leal para que aproveitassem essa oportunidade para amadurecer o diálogo em andamento sobre relações possíveis entre fotossíntese e fotografia. À provocação de Jorgge, Pedro respondeu com flagras noturnos dessas presenças indesejadas pelos humanos. Com esse exercício de recalibragem do olhar, propomos outro modo de cultivo que se instaura nas ruínas da percepção que hierarquiza e sustenta o excepcionalismo humano. O que se cultiva em Noturnos é a arte de notar.
*Texto de Pedro Leal e Jorgge Menna Barreto
Sobre a exposição Cultivo:
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Risky Appearance – about the Nocturnes series
Having outlined the subject of Nocturnes, it is worth discussing the chosen language. Why flash photography; and why night scenes? The option is curious, especially considering that plants are essentially beings of sunlight. About the initial motivation, there is no reason to pretend: as in many artistic works, the series started by chance, without a pre-programmed plan, gaining momentum later on. At first, in the midst of recordings of other random subjects, some “street” plants were simply photographed.
An intuitive approach when seeing these first images was that of photographs of immigrants surprised while trying to cross borders, records that make up reports on illegal immigration. It then fell to investigate and elaborate the reasons for such association. Certainly, the most immediate link is the fact that, in both cases, they are clandestine activities surprised by the snapshot of the flashes. And here is a brief comment on the use of flash in photography.
If composed with ambient light, a photo usually has different gradations of light and shadow, which gives a certain thickness of temporality to the images. In flash photography, however, there is a flattening of this luminous and, consequently, temporal heterogeneity. The light is bursting and cutting; if there is surface behind the main subject, a defined shadow is cut. Here we have a sensation of instantaneous, which makes what happens even more vibrate. It is not by chance that the language of photography “of the act” combines so well with photography with flash – and this in a range of subjects as vast as celebrities at glamorous events, friends at a party or characters caught in illicit occupations. This last subject, of course, was what motivated us.
For the composition of the series, a photo session was done in the garden and around the gallery Marli Matsumoto, whom we thank for accepting our proposal to let these spontaneous plants grow. From the gallery session, 2 photos were included in the series. The other images were taken in random anthropized spaces. When made around where Pedro lives, the plants gained his appreciation and were sought after every time he passed by the place where they were. However, the photographer was sometimes surprised: after a while, some of the “photo models” were no longer there, they had been ripped off.
It was then that the extremely transitory existence of these plants weighed on us, their time of existence extended by the time to find an organizing impetus. Such a spatial ordering impulse sometimes arrives in days, months, although sometimes it never arrives. In general, the perceived being of these plants is accompanied by a “we have to pull them out”, or at least the realization that they mess up the space, giving it an aspect of disorder and neglect. Hence a certain style of existence that at the same time develops as quickly as possible in order to be able to multiply, but also relies on doing it secretly, since being perceived can mean not being, in reverse parodying the formula of the Irish philosopher George Berkeley.
Our effort to notice them, therefore, sought images in which this risky appearance is captured, witnessing a way that disobeys the prescription of many humans, which challenges and, in a certain way, mocks our conception of order and progress.
Cultivation
When invited to participate in the Cultivo exhibition, Jorgge Menna Barreto drew on his ongoing reflection on so-called spontaneous plants. In a conversation with artist and curator Raphaela Melsohn, he drew attention to the “too-human” connotation of the term. Cultivation is linked to culture and often characterizes an interspecies relationship in which humans define, according to their perception, what should be cultivated and privileged, often to the detriment of “less interesting” species. Behold, the proposal to work with weeds proposes a reading of the term cultivation by its reverse, proposing a look at those forms of existence that are not cultivated, but insist on being present. The first provocation came to the gallery that hosts the project: would it be possible, during the months leading up to the exhibition, to let the garden that surrounds the space welcome these “unwanted presences”? Thinking about the relationship between these plants and photosynthetic processes and fitting this line of thought with another ongoing conversation, Jorgge extended an invitation to photographer Pedro Leal to take advantage of this opportunity to mature the ongoing dialogue about possible relationships between photosynthesis and photography. To Jorgge’s provocation, Pedro responded with nocturnal captures of these presences unwanted by humans. With this exercise of recalibration of the gaze, we propose another way of cultivation that is established in the ruins of the perception that hierarchizes and sustains human exceptionalism. What is cultivated in Nocturnes is the art of noticing.
*Text by Pedro Leal and Jorgge Menna Barreto
About the exhibition Cultivo:
Foto: Ana Pigosso / Cortesia Marli Matsumoto Arte Contemporânea