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Nota dos tradutores

Jorgge Menna Barreto e Yudi Rafael

Toda tradução desloca o seu original, coloca-o em movimento. O contexto de aterrissagem alimenta encontros inesperados e fricções com outras sintaxes, corpos e especificidades, a partir dos quais significados novos podem emergir ou serem atualizados. Se textos estão situados na história, o mesmo ocorre com suas traduções. Nesse caso, é significativo que tenhamos recebido o PDF de The Mushroom at the End of the World [EUA, 2015] para trabalhar na sua versão brasileira em 19 de setembro de 2018 – isto é, um mês antes de uma eleição presidencial histórica que aprofundou ainda mais as fraturas do país. Desde então, ao longo desses três anos, o Brasil passou por um violento processo de consolidação da extrema direita e pela emergência da crise da pandemia de Covid-19, cuja combinação já produziu mais de meio milhão de mortes.

Tendo em vista tal situação, a tradução deste livro, cuja atenção aos processos vitais é notável, pretende somar-se aos empenhos daqueles que têm buscado imaginar outras possibilidades de fazer mundo. Fruto de uma pesquisa poderosa e extensa que manifesta pensamento profundo e linguagem precisa, o trabalho elaborado de Tsing estimula a imaginação e fortalece o sistema imunológico intelectual. Sua profusão de narrativas contribui enfaticamente para o entendimento da complexidade das pulsões de vida nas ruínas do planeta. Cabe enfatizar que essa obra aterrissa no Brasil em um contexto marcado pela perpetuação de práticas estatais genocidas contra populações negras, indígenas e em situação de precariedade; e de dinâmicas extrativistas que naturalizam a simplificação de ecossistemas inteiros para se tornarem hectares, de modo que uma destruição sem precedentes de ambientes florestais seja fomentada para liberar a “passagem da boiada”. Dessa forma, entendemos a tradução deste livro também como intervenção cultural e política, um trabalho de ampliação do debate sobre conceitos, vocabulários e imagens tão necessários para apreender uma crise extraordinária, que é também uma crise da representação e da linguagem. 

Traduzir é uma das formas mais atentas de ler, abrindo cada palavra para capturar suas sementes (ou esporos), que então são transplantadas para outros territórios e situações. No entanto, o conteúdo deste livro não se limita ao texto. A obra de Tsing é múltipla e estende-se à fotografia e desenhos, incluindo reflexões sobre aromas e sabores. Assim, ao propor uma leitura a partir de múltiplos sentidos, o livro persegue experimentações formais e flerta com os limites do próprio texto. Estimulados por essa miríade de sensações e seguindo os rastros do cogumelo junto com a autora, concebemos a imagem do tradutor enquanto fungo. Deste modo, evocamos a atuação daqueles fungos criadores de intrincadas malhas subterrâneas que, em simbiose com as plantas, colaboram para o fazer florestas. Essa relação simbiótica se dá a partir do sistema digestivo extracelular micorrízico, que disponibiliza nutrientes benéficos para o mundo vegetal. Este, por sua vez, alimenta suas espécies companheiras com açúcar originado da fotossíntese. De forma parecida, ao tornarem o produto da sua leitura público, tradutores também expressam esse metabolismo extrovertido. Eles perturbam a aparente estabilidade do original à medida que examinam suas raízes e transcriam significados e nutrientes para outras culturas, idiomas e meios. Nesse sentido, o ato da tradução sustenta a biodiversidade do pensamento, minando a perspectiva monocultural e ajudando a navegar o fim do mundo, pois muitos outros podem se fazer notar, como uma torrente de cogumelos depois da chuva.

Imagens de torrentes, profusões e multiplicidades permeiam o livro original e a tradução as intensifica, já que, diante de cada conceito, ideia ou expressão, apresenta-se uma variedade de opções. Isso se dá em parte pela própria assimetria entre línguas, que impede que uma transposição de significados entre diferentes idiomas e culturas seja completa e, portanto, conclusiva. No entanto, são justamente essas brechas que tornam o papel do tradutor algo interpretativo e criativo. Em um livro que, além de ser um documento científico, flerta com as artes e a literatura, tal tarefa foi especialmente instigante, já que o texto original também é matéria poética. Nessa dança, gostaríamos de tomar a oportunidade para examinar, junto com o leitor, a plasticidade contida em algumas opções de tradução que fizemos ao longo do percurso, muitas das quais informadas por diálogos frutíferos com a própria autora e com os revisores técnicos Thiago Cardoso e Rafael Devos.

A começar pelo arts of noticing, que optamos traduzir por artes de notar. Embora tenhamos considerado os termos perceber, que foi a opção do livro Viver em Ruínas, e observar, inspirados pelo l’art d’oserver da versão francesa, o verbo notar, com sua despretensão que o associa ao cotidiano, pareceu-nos mais adequado para dar conta dos encontros indeterminados dos fluxos de vida próprios do universo da coleta de cogumelos selvagens relatados pela autora. Notar, assim, não sugere uma carga programática, mas sim a espontaneidade do encontro com algo que não foi cultivado, que emerge como uma dádiva, um fruto do acaso que efetivamente depende de um envolvimento e uma investigação curiosa das linhas da vida. 

Outra decisão de tradução que marca essa versão do livro para o português é a de manter a distinção entre história e estória – history e story. Isso porque ela constitui, no original, uma forma bastante recorrente de chamar atenção para diferentes questões ao longo do texto. Como nos apontou a autora em troca de emails, ao utilizar story ela se refere à narrativa e quer, sobretudo, chamar atenção para o gênero, a forma da contação; enquanto ao usar history, ela se refere aos eventos do passado e seus desdobramentos. Assim, por mais que tal distinção tenha caído em desuso no português atual – uma vez que o vocábulo história, em nossa língua, cumpre ambos papéis – neste caso pareceu-nos que não marcá-la poderia significar um achatamento da diferença articulada no original. 

Já o termo patch demanda algumas considerações. Embora a autora explicite que o seu uso se baseia nos estudos da paisagem, que equivaleria à mancha em português, a complexidade do significado do seu uso enquanto adjetivo – patchy –, não é alcançada pelo português “manchado”, por exemplo. Assim, sendo fiéis ao uso do conceito na ecologia, traduzimos a palavra patch por mancha; mas, ao nos depararmos com patchy, optamos por irregular ou fragmentário. Se no original os usos de patch e patchy estão interligados, na tradução rompe-se essa conexão para priorizar uma maior precisão descritiva. 

Salvage é outra expressão central para a obra, usada pela autora em sua teorização sobre o capitalismo. Por exemplo, traduzimos salvage rhythms, título do capítulo 10 deste livro, por ritmos de aproveitamento. Ao invés de salvamento, utilizado em discussão prévia sobre a produção da autora, resgate ou mesmo captura, optamos por aproveitamento por entender que este termo melhor expressa a apropriação capitalista do valor produzido fora de sua lógica, tal como propõe o livro. Além disso, buscamos tirar partido da ambiguidade do termo aproveitamento, que também está contida em salvage: aproveitamento enquanto resgate, mas que também reverbera o “tirar proveito” ou “aproveitar-se” que caracterizam relações de exploração capitalista. 

Por fim, temos a noção de assembleia, do inglês assemblage. Como já elaborado por Anna Tsing em prefácio escrito para o livro Viver nas ruínas, o termo em inglês mantém-se aberto a legados distintos que não se encontram nesta tradução. Se assemblage é tanto agenciamento, tal como utilizado pelos autores franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, quanto assembleia, vocábulo próprio ao campo da ecologia da paisagem, a nossa tradução para o português opta pelo último, pois este abarca o legado privilegiado pela autora em seu uso do termo. 

Pensar nunca é um ato solitário, ou mesmo algo que se faça sobre um determinado assunto. Pensar é uma atividade relacional, é pensar-com, e pressupõe generosidade, curiosidade e certa horizontalidade, valores cultivados neste livro. Nesse sentido, toda empreitada intelectual possui um caráter dialógico, que buscamos imprimir na tarefa da tradução. Pois diante da dimensão colaborativa da pesquisa, que tantas vezes é tratada no original, pareceu-nos inadequado que a sua tradução fosse feita por uma pessoa apenas. Juntamos saberes, esforços e leituras, e, por vezes, desleituras, para que a nossa versão ganhasse uma perspectiva múltipla que desse a ver a amplitude do texto de partida. Todavia, a dimensão dialógica dessa escrita não diz respeito somente ao fato de termos constituído uma dupla para realizar o trabalho. Todo ato tradutório se escora em um texto que veio antes e, assim, é inevitável que uma tradução seja entendida a partir de sua dimensão polifônica. Traduzir também é escrever-com. Nossa escrita conjunta, portanto, aponta para diversos entrelaçamentos, emaranhados e mutualismos que buscam compor uma metodologia da tarefa tradutória que se assuma enquanto plural e, com isto, atualize a força relacional que a autora atribui aos fungos e às assembleias multiespécies, de modo amplo.

Um livro que é capaz de cruzar diversas disciplinas como ecologia, economia, antropologia e história torna a tarefa de tradução ainda mais exigente e esse feito não teria sido possível se não tivéssemos recebido apoio de amigos e interlocutores em diferentes estágios do processo, a quem somos especialmente gratos. Gostaríamos de agradecer à equipe da n-1 edições pela confiança em nosso trabalho e pela generosidade do convite, e deixar nossos sinceros agradecimentos a Anna Tsing, Peter Pál Pelbart, Lara Fuke, Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos, Mariana Lanari, Joana Cabral de Oliveira, Jun Akamine, Alex Ungprateeb Flynn, Pedro Bonfim Leal, Maria Moreira e Eloisa Brantes. Gostaríamos de agradecer ainda à Jan van Eyck Academie e ao Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro pelo apoio recebido.  

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[EN]

Translators’ note

Jorgge Menna Barreto and Yudi Rafael

Every translation displaces its original, sets it in motion. The landing context feeds unexpected encounters and frictions with other syntaxes, bodies and specificities, from which new meanings can emerge or be updated. If texts are situated in history, so are their translations. In this case, it is significant that we received the PDF of The Mushroom at the End of the World [USA, 2015] to work on its Brazilian version on September 19, 2018 – that is, a month before a historic presidential election that deepened further the fractures of the country. Since then, over these three years, Brazil has gone through a violent process of consolidation of the extreme right and the emergence of the COVID-19 pandemic crisis, the combination of which has already produced more than half a million deaths.

In view of this situation, the translation of this book, whose attention to vital processes is remarkable, intends to add to the efforts of those who have sought to imagine other possibilities of making the world. Fruit of powerful and extensive research that manifests deep thought and precise language, Tsing’s elaborate work stimulates the imagination and strengthens the intellectual immune system. Its profusion of narratives emphatically contributes to the understanding of the complexity of life impulses in the ruins of the planet. It is worth emphasizing that this work lands in Brazil in a context marked by the perpetuation of genocidal state practices against black, indigenous and precarious populations; and extractive dynamics that naturalize the simplification of entire ecosystems to become hectares, so that an unprecedented destruction of forest environments is fostered to release the “cattle passage”. In this way, we understand the translation of this book also as a cultural and political intervention, a work to broaden the debate on concepts, vocabularies and images so necessary to apprehend an extraordinary crisis, which is also a crisis of representation and language.

Translating is one of the most attentive ways of reading, opening each word to capture its seeds (or spores), which are then transplanted to other territories and situations. However, the content of this book is not limited to the text. Tsing’s work is multiple and extends to photography and drawings, including reflections on aromas and flavors. Thus, by proposing a reading from multiple meanings, the book pursues formal experimentation and flirts with the limits of the text itself. Stimulated by this myriad of sensations and following the trail of the mushroom together with the author, we conceived the image of the translator as a fungus. In this way, we evoke the action of those fungi that create intricate subterranean meshes that, in symbiosis with plants, collaborate to make forests. This symbiotic relationship occurs from the mycorrhizal extracellular digestive system, which provides beneficial nutrients to the plant world. This, in turn, feeds its companion species with sugar originating from photosynthesis. Similarly, by making the product of their reading public, translators also express this extraverted metabolism. They upset the apparent stability of the original as they examine its roots and transcreate meaning and nourishment for other cultures, languages, and mediums. In this sense, the act of translation sustains the biodiversity of thought, undermining the monocultural perspective and helping to navigate the end of the world, as many others can make themselves noticed, like a torrent of mushrooms after rain.

Images of torrents, profusions and multiplicities permeate the original book and the translation intensifies them, since, in front of each concept, idea or expression, a variety of options are presented. This is partly due to the asymmetry between languages, which prevents a transposition of meanings between different languages ​​and cultures from being complete and, therefore, conclusive. However, it is precisely these gaps that make the role of the translator interpretive and creative. In a book that, in addition to being a scientific document, flirts with the arts and literature, this task was especially exciting, since the original text is also poetic material. In this dance, we would like to take the opportunity to examine, together with the reader, the plasticity contained in some translation options that we made along the way, many of which were informed by fruitful dialogues with the author herself and with the technical reviewers Thiago Cardoso and Rafael Devos.

Starting with arts of noticing, which we chose to translate as arts of noting. Although we have considered the terms perceive, which was the option of the book Viver em Ruínas, and observe, inspired by the l’art d’oserver of the French version, the verb to notice, with its unpretentiousness that associates it with everyday life, seemed to us to be more appropriate to account for the undetermined meetings of the life flows typical of the universe of wild mushroom collection reported by the author. Noticing, therefore, does not suggest a programmatic load, but rather the spontaneity of the encounter with something that has not been cultivated, that emerges as a gift, a result of chance that effectively depends on an involvement and a curious investigation of life lines.

Another translation decision that marks this Portuguese version of the book is to maintain the distinction between history and history – history and story. This is because it constitutes, in the original, a very recurrent way of drawing attention to different issues throughout the text. As the author pointed out to us in an email exchange, when using story she refers to the narrative and wants, above all, to draw attention to the genre, the form of the story; while in using history, it refers to past events and their unfolding. Thus, even though this distinction has fallen into disuse in current Portuguese – since the word history, in our language, fulfills both roles – in this case it seemed to us that not marking it could mean a flattening of the difference articulated in the original.

The term patch demands some considerations. Although the author explains that its use is based on landscape studies, which would be equivalent to a patch in Portuguese, the complexity of the meaning of its use as an adjective – patchy –, is not achieved by the Portuguese “spotted”, for example. Thus, being faithful to the use of the concept in ecology, we translate the word patch as patch; but when faced with patchy, we chose irregular or fragmentary. If in the original the uses of patch and patchy are linked, in the translation this connection is broken in order to prioritize greater descriptive precision.

Salvage is another expression central to the work, used by the author in her theorizing about capitalism. For example, we have translated salvage rhythms, the title of chapter 10 of this book, as harnessing rhythms. Instead of salvage, used in a previous discussion about the author’s production, rescue or even capture, we chose to use it because we understand that this term better expresses the capitalist appropriation of the value produced outside its logic, as the book proposes. In addition, we seek to take advantage of the ambiguity of the term exploitation, which is also contained in salvage: exploitation as rescue, but which also echoes the “take advantage” or “take advantage” that characterize relations of capitalist exploitation.

Finally, we have the notion of assembly, from the English assemblage. As already elaborated by Anna Tsing in the preface written to the book Viver nas ruínas, the term in English remains open to different legacies that are not found in this translation. If assemblage is both assemblage, as used by French authors Gilles Deleuze and Félix Guattari, and assemblage, a term proper to the field of landscape ecology, our translation into Portuguese opts for the latter, as it encompasses the legacy privileged by the author in her use of the term.

Thinking is never a solitary act, or even something you do about a certain subject. Thinking is a relational activity, it is thinking-with, and it presupposes generosity, curiosity and a certain horizontality, values ​​cultivated in this book. In this sense, every intellectual endeavor has a dialogical character, which we seek to imprint on the task of translation. Given the collaborative dimension of the research, which is so often dealt with in the original, it seemed inappropriate to have its translation done by just one person. We gathered knowledge, efforts and readings, and sometimes misreadings, so that our version gained a multiple perspective that showed the breadth of the source text. However, the dialogic dimension of this writing does not only concern the fact that we formed a pair to carry out the work. Every act of translation is supported by a text that came before it and, thus, it is inevitable that a translation is understood from its polyphonic dimension. To translate is also to write-with. Our joint writing, therefore, points to several intertwinings, entanglements and mutualisms that seek to compose a methodology of the translation task that assumes itself as plural and, with this, updates the relational force that the author attributes to fungi and multispecies assemblages, in a broad way. .

 

A book that is able to cross different disciplines such as ecology, economics, anthropology and history makes the translation task even more demanding and this feat would not have been possible if we had not received support from friends and interlocutors at different stages of the process, to whom we are especially grateful. We would like to thank the team at n-1 editions for their trust in our work and for the generosity of the invitation, and our sincere thanks to Anna Tsing, Peter Pál Pelbart, Lara Fuke, Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos, Mariana Lanari, Joana Cabral de Oliveira, Jun Akamine, Alex Ungprateeb Flynn, Pedro Bonfim Leal, Maria Moreira and Eloisa Brantes. We would also like to thank the Jan van Eyck Academie and the Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro for their support.

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