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Lia Menna Barreto apresenta aqui uma coleção de bonecas feitas por ela mesma. Lia se dispôs a fazer uma boneca por dia durante pouco mais de um ano. O resultado é um agrupamento de aproximadamente 400 bonecas dos mais variados estilos e materiais. A disposição do trabalho se dá em linhas de 7 bonecas cada, seguindo a ordenação das semanas, como num calendário.

O trabalho é muito colorido e divertido. Os materiais para a confecção das bonecas foram os mais variados. Podemos encontrar desde o papel alumínio até a madeira, passando pelo tecido, algodão e até mesmo o pauzinho de picolé – todos transformados em boneca, seja porque indicam claramente um corpo ou porque o seu entorno nos diz que tudo o que está ali são bonecas.

É impossível ver o trabalho sem ser seduzido. Logo que entramos na galeria, nos deparamos com todas aquelas bonecas nos olhando. Umas mais exibidas. Outras mais tímidas. Todas muito autênticas. E uma vez fisgados pela exuberância visual desta obra, nos tornamos terreno fértil para que Lia instaure em nós a complexidade de seu pensamento. Qual seria esse?

Talvez não possamos fazer essa pergunta no singular. Talvez tenhamos que falar em múltiplas proposições. Mas daí também corremos o risco de ficar na superficialidade. Gostaria de, nesse momento, tentar me debruçar sobre um aspecto que me foi uma revelação deste trabalho e motivo de agradável surpresa: a Lia escritora.

Já não é de hoje que as palavras e o texto namoram e intersectam a arte contemporânea. Aliás, esse cruzamento entre palavra e imagem vem desde o Dadaísmo. Apesar de não encontrarmos uma palavra sequer nesse trabalho de Lia, por que será que vejo uma aproximação entre texto e imagem nesta operação apresentada pela artista?

Começo pelo título do trabalho: Diário de uma Boneca. A palavra diário pode ter vários significados. Entre eles está uma forma de registro de nossas ações, pensamentos, humores e acontecimentos em forma escrita, ao qual muitos de nós se dedicam ou já se dedicaram em algum momento da vida. Um diário pode ser um caderno de anotações no qual nos expomos e revelamos, na maioria das vezes só para nós mesmos, muitos dos nossos pensamentos mais íntimos e secretos. Diários abrigam aquela parte de nós que não cabe no nosso dia a dia, mas que no território livre do papel e da escrita encontra aconchego.

Há algo curioso que me chama atenção na criação de um diário. Quando nos colocamos frente a um papel e nos propomos a lembrar do que aconteceu no nosso dia, me parece que esse papel vira uma tela projetiva na qual nos vemos atuando e percorrendo os caminhos (internos e externos) da nossa produção do dia. Assim, nos colocamos no papel de observadores da nossa própria existência, criando um duplo para nós mesmos – o que atua e o que observa, quem escreve e quem lê.

Lia torna explícito esse exercício da criação de um duplo que se dá na construção de um diário. A boneca é o duplo do humano. Povos primitivos acreditam que, no ritual do vodoo, a ligação entre a boneca e a pessoa é tão íntima que, quando a boneca que representa alguém sofre uma ação, essa mesma ação seria sentida pelo referente desta boneca.

Outra pista que a Lia nos dá, e que indica a proximidade deste trabalho com um texto, é a ordenação das bonecas em linhas de tempo que fazem o percurso da esquerda para a direita, e assim que uma linha termina, volta à esquerda da linha debaixo. Quando uma “página” é completada (cada uma com aproximadamente 9 linhas), Lia inicia a próxima página lá em cima no canto esquerdo, exatamente como fazemos na escrita ocidental. Encontramos seis “páginas” de bonecas na Galeria Obra Aberta.

Mas como é possível escrever sem palavras? Ou ler bonecas?
A origem da palavra caráter (que é a mesma de caractere) vem nos esclarecer esse ponto. Originalmente do grego “caraktér”, “a palavra significava “marca gravada”, que se expandiu para “letra” e “signo”, e então começou a conotar “rosto” e “aparência” num sentido de características psicológicas mais do que físicas. É dito que isso tenha acontecido em torno do século XVII, e aqui a duplicidade da palavra “caráter” nasce”.

É possível ler o diário de Lia Menna Barreto. Cada bonequinha carrega em si uma expressão, um olhar, uma história, um caráter. Muitas vezes, os caracteres que Lia usa são opacos. Não conseguimos saber objetivamente o que aconteceu naquele dia da Lia. Assim como num diário, a leitura nem sempre é revelada ao outro. Algumas vezes, a artista até deixa escapar uma pista: “Ah, aquelas ali foram feitas quando o meu pai estava doente. Por isso estão meio tristes”. Mas a maioria guarda o seu segredo, seu mistério. E então a artista nos oferece caracteres que não são sempre legíveis. Pelo menos não em suas camadas mais profundas. Essa escritura possui códigos próprios que só mesmo a artista saberia situar, quase como se fosse um diário escrito numa outra língua, uma língua que não conhecemos…mas como pode nos ser tão familiar?

Aí reside um mistério desse trabalho. A obstrução que essas bonecas oferecem para a leitura de camadas mais autobiográficas acaba sendo como um trampolim para que esses caracteres sirvam de possíveis dados biográficos para quem os lê. E então, o diário deixa de ser o diário da Lia e passa a ser o meu diário. E, num exercício de transferência, Lia vela o seu duplo para que possa ser o nosso duplo, e assim, encontramos pedaços nossos em seus pedaços e criamos um vínculo com o trabalho que passa a ser de uma intimidade de diário. Lia cria caracteres que poderiam muito bem habitar as páginas de nosso diário mais secreto. Expande assim a escrita. Cria um vocabulário e caracteres que nomeiam tantos sentimentos e sensações até então sem nome. Expande assim a linguagem. Diário de uma Boneca é um trabalho generoso. Nos toca profundamente. Subsidia-nos com material para pensar. Pensava nisso enquanto lia.

Galeria Obra Aberta, Porto Alegre, Brasil

[EN]

Text about the work “Diary of a Doll” by artist Lia Menna Barreto
2001

Lia Menna Barreto presents here a collection of dolls made by herself. Lia set out to make a doll a day for a little over a year. The result is a grouping of approximately 400 dolls of the most varied styles and materials. The arrangement of the work is done in lines of 7 dolls each, following the order of the weeks, as in a calendar.

The work is very colorful and fun. The materials for making the dolls were the most varied. We can find everything from aluminum foil to wood, through fabric, cotton and even popsicle sticks – all transformed into dolls, either because they clearly indicate a body or because their surroundings tell us that all that is there are dolls.

It is impossible to see the work without being seduced. As soon as we entered the gallery, we saw all those dolls looking at us. Some more displayed. Others are more shy. All very authentic. And once we are hooked by the visual exuberance of this work, we become fertile ground for Lia to establish in us the complexity of her thought. What would that be?

Perhaps we cannot ask this question in the singular. Perhaps we have to speak of multiple propositions. But then we also run the risk of being superficial. I would like, at this moment, to try to focus on an aspect that was a revelation of this work to me and a reason for a pleasant surprise: Lia, the writer.

Words and text are no longer new to date and intersect with contemporary art. In fact, this intersection between word and image comes from Dadaism. Although we can’t find a single word in Lia’s work, why do I see an approximation between text and image in this operation presented by the artist?

I begin with the title of the work: Diary of a Doll. The word diary can have several meanings. Among them is a form of recording our actions, thoughts, moods and events in written form, to which many of us dedicate themselves or have dedicated themselves at some point in their lives. A diary can be a notebook in which we expose ourselves and reveal, most of the time only to ourselves, many of our most intimate and secret thoughts. Diaries shelter that part of us that doesn’t fit into our daily lives, but that finds comfort in the free territory of paper and writing.

There is something curious that catches my attention in creating a diary. When we face a role and propose to remember what happened in our day, it seems to me that this role becomes a projective screen on which we see ourselves acting and walking the paths (internal and external) of our production of the day. Thus, we put ourselves in the role of observers of our own existence, creating a double for ourselves – the one who acts and the one who observes, who writes and who reads.

Lia makes this exercise of creating a double that takes place in the construction of a diary explicit. The doll is the double of the human. Some cultures believe that, in the voodoo ritual, the connection between the doll and the person is so intimate that when the doll representing someone undergoes an action, that same action would be felt by the referent of this doll.

Another clue that Lia gives us, and which indicates the proximity of this work to a text, is the ordering of the dolls in timelines that travel from left to right, and as soon as a line ends, it returns to the left of the line below. When a “page” is completed (each approximately 9 lines), Lia starts the next page up there in the left corner, just like we do in Western writing. We found six “pages” of dolls at Galeria Obra Aberta.

But how is it possible to write without words? Or read dolls?

The origin of the word character (which is the same as character) comes to clarify this point. Originally from the Greek “caraktér”, “the word meant “engraved mark”, which expanded to “letter” and “sign”, and then began to connote “face” and “appearance” in a sense of psychological rather than physical characteristics. This is said to have happened around the 17th century, and here the duplicity of the word “character” is born.

It is possible to read Lia Menna Barreto’s diary. Each doll carries an expression, a look, a story, a character. Often the characters Lia uses are opaque. We were unable to objectively know what happened that day for Lia. As in a diary, the reading is not always revealed to the other. Sometimes, the artist even lets slip a clue: “Oh, those were made when my father was sick. That’s why they’re kind of sad.” But most keep their secret, their mystery. And then the artist offers us characters that are not always readable. At least not in its deepest layers. This writing has its own codes that only the artist would be able to locate, almost as if it were a diary written in another language, a language we don’t know…but how can it be so familiar to us?

Therein lies a mystery of this work. The obstruction that these dolls offer to the reading of more autobiographical layers ends up being like a springboard for these characters to serve as possible biographical data for those who read them. And then the diary is no longer Lia’s diary and becomes my diary. And, in an exercise of transference, Lia veils her double so that it can be our double, and thus, we find pieces of ourselves in pieces of her and create a bond with the work that becomes a diary intimacy. Lia creates characters that could very well inhabit the pages of our most secret diary. It thus expands the writing. She creates a vocabulary and characters that name so many feelings and sensations hitherto unnamed. It thus expands the language. Diary of a Doll is a generous work. It touches us deeply. It subsidizes us with material to think about. I thought about it as I read.

Galeria Obra Aberta, Porto Alegre, Brazil