Minha Terra, Sua Terra

O texto foi escrito por encomenda a partir da exposição “Geração em Trânsito” no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro.

2001

 

“Alguns anos vivi em Itabira.
 Principalmente nasci em Itabira. 
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas. 
Oitenta por cento de ferro nas almas. 
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.”

Carlos Drummond de Andrade


“Minha terra, sua terra”, o novo projeto de Jorge Menna Barreto, tem a vocação de obra infinita, trabalho que jamais se encerrará, perpétuo como o é a condição errante do corpo, essa matéria pouca e prodigiosa que se equilibra em vertical frágil e digna, que vive de desafiar a linha do horizonte – linha que transborda para além e aquém, convertendo-se em armadilha que avança em plano até se constituir no próprio chão que o corpo pisa; linha que, conjurada à gravidade, tenta permanentemente vencer o corpo, vergá-lo, dobrá-lo sobre si, até que ele caia e jaza, imóvel, morto, até que ele, encasulado em cova mínima, útero frio e final, decomponha-se pela ação dos vermes, torne-se também chão, também terra.
“Minha terra, sua terra” consiste no deslocamento de 750 quilos de terra da cidade de Porto Alegre, que na ordem idealizada dos mapas corresponde às coordenadas 051oW;30oS, para a cidade do Rio de Janeiro, cujas coordenadas são 043oW;22oS. Lá, a cada semana, Jorge embalará 700 saquinhos de 100 gramas para então ofertá-los ao público.

Porque a ordem dos números oculta o rosto das coisas, convém esclarecer que o que faz o artista eleger a terra de Porto Alegre para levá-la ao Rio de Janeiro é porque ele vive nesta cidade que o alimenta o abriga, que é o ponto de encontro físico e cotidiano entre ele e os outros. Quanto aos 70 quilos não se trata de um número arbitrário mas do número que corresponde ao peso do artista.

Embora Porto Alegre e Rio de Janeiro sejam cidades, elas não são redutíveis entre si do mesmo modo que nenhuma coisa é redutível a outra. Ainda assim, o aspecto essencial que ambas têm em comum é que elas, como todas as cidades, da menor e mais longínqua aldeia à megalópole, traem o desejo de permanência do homem. O desejo remoto por um aqui, pela fixação de um marco, de um rastro duradouro capaz de lançar um agrupamento de homens em direção ao futuro, para junto de outros homens que embora não os cheguem a conhecê-los, caminharão por entre as casas, ruas e praças que a eles lhes foram legadas como se cumprissem um ritual em louvor à memória daqueles que as construíram.

Historicamente, a vontade de permanência do homem sucedeu à sua vontade de movimento, mas não a suprimiu. O homem planta uma cidade num chão qualquer, mas sempre haverá nele a nostalgia do périplo. Se o sedentarismo é manifesto nas paredes e tetos das casas, são, por sua vez, as portas e janelas a eminente possibilidade do nomadismo. E até mesmo aquele que está solidamente aferrado a sua escrivaninha, até mesmo o mais paralítico dos homens, imerso em rotinas circulares, transforma-se num viajante tão logo lance o olhar na distância.

A obsessão do homem pelo movimento já se verifica internamente, na própria circulação sanguínea, no fluxo vivo que acontece de cima a baixo e que não poupa sequer os espaços mais recônditos, os túneis mais estreitos que se dissolvem em miríades de agulhas flexíveis, para melhor atingir o interior das células que compõe os tecidos. Isto para não se referir ao ponto de partida de tudo, na explosão primeira a que os físicos se referem e que ainda reverbera, tênue e imperceptível, no ritmo compassado das explosões cardíacas. A inclinação pelo movimento prossegue já na relação tentacular que os sentidos mantêm com o entorno: no tato que apara o vento na cara, no olfato que busca a fonte dos aromas, na audição que acusa até aquilo que não se mostra e na visão que nos expande até onde os contornos ficam difusos.

O projeto de Menna Barreto oscila entre esses dois pólos: a permanência e a mobilidade; pendula entre a decisão de fincar raízes em um sítio como uma árvore faria, ou distender-se pela vastidão do território, como uma seta arremessada por um arqueiro. E como tratar dessa questão de resto insolúvel posto que os dois termos vivem dentro de nós? E, ademais, como enfrentar o fato de que mesmo a solidez da nossa casa, ponto de convergência de todas as nossas rotas, só pode ser levada na memória, como também exclusivamente na memória conservamos a experiência vivida em outros lugares? Assim como é pouco, muito pouco, o que das coisas e dos outros se conserva em nós, o que de nós sobra nessas mesmas coisas e outros?

A resposta encontrada por Jorge Menna Barreto é a transmutação do seu corpo em terra, sua passagem para a matéria seminal, fonte de toda a vida, anterior e posterior a ela. A pouca matéria do seu corpo assume como seu equivalente um pouco de terra. Sua pele, poros e vísceras dissolver-se-ão em flocos escuros, úmidos e disformes. Junto com sua dimensão material, tangível, também será alvo dessa passagem a singularidade da sua existência. Tudo isso, e é incrível que caiba num só corpo, num frágil corpo, transformar-se-á em vários pequenos pacotes de terra, pacotes que serão levados para as casas de pessoas que o artista viu por frações de segundo, ou que sequer viu, para lá serem despejados em vasos de flor ou nem mesmo isso, para lá serem simplesmente abandonados até que alguém os vejam e os coloquem no lixo. Pois mesmo aí, longe do artista e em contato estreito com todo resíduo produzido por um homem, junto aos despojos do cotidiano, mergulhado nas sombras, esquecido, esse pouco de terra será mais uma vez um campo no qual a vida, prodigiosa, irá medrar.

Prof. Dr. Agnaldo Farias
Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos
Universidade de São Paulo